A Blizzard está sutilmente tentando nos fazer esquecer Shadowlands, a expansão que conseguiu transformar um dos melhores antagonistas da história de World of Warcraft (Arthas) em mera marionete de uma entidade sem carisma chamada Carcereiro. Agora, com o lançamento das Crônicas Volume 4 e os desenvolvimentos recentes no jogo, fica evidente que a empresa está realizando um “retcon cirúrgico” para minimizar o impacto dessa história desastrosa no universo do jogo.

Enquanto muitos jogadores gostariam de deletar completamente as memórias de Vietnam que Shadowlands nos proporcionou, é importante entender quais elementos estão sendo alterados e quais permanecerão como cicatrizes indeléveis no lore do WoW. Vamos analisar como a Blizzard está tentando consertar o estrago sem admitir abertamente o fiasco narrativo que criou.

O Carcereiro continua existindo, mas está sendo diminuído

Vamos esclarecer logo de cara: o Carcereiro (Zovaal) ainda é um personagem canônico no universo de World of Warcraft. Ele existiu, nós o derrotamos, e isso não vai mudar. O que está sendo alterado são suas motivações, sua influência e seu impacto na história maior do jogo.

A Blizzard está reduzindo drasticamente a importância do Carcereiro na narrativa geral. Um exemplo disso é a alteração das últimas palavras de Zovaal. Durante a raid que o derrotou, ele alertou sobre uma ameaça maior, dizendo que um “universo dividido” não poderia enfrentar o que estava por vir. Isso gerou inúmeros memes sobre “a ameaça por trás da ameaça por trás da ameaça” - algo que se tornou uma piada recorrente na comunidade, assim como aconteceu com Sylvanas e agora com Xal’atath.

De acordo com as novas informações das Crônicas Volume 4, Zovaal nunca soube especificamente sobre qual ameaça ele estava falando. Foi apenas um pressentimento vago que ele teve enquanto exercia sua função como Árbitro, vendo as almas passarem para o além. Ele simplesmente sentiu que algo estava crescendo lá fora, sem qualquer detalhe ou conhecimento específico. Isso transforma suas grandes maquinações e planos em algo completamente estúpido e vazio, mas tem um propósito narrativo: reduzir seu peso na história para que possamos seguir em frente sem precisar lidar com as consequências de suas ações.

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Os elementos salvos de Shadowlands: negociantes e outras peças úteis

Nem tudo em Shadowlands foi um desastre, e a Blizzard está estrategicamente preservando e recontextualizando os elementos que funcionaram. Um exemplo perfeito são os Negociantes (ou Brokers, em inglês).

No patch mais recente, vemos Ve’nari, um personagem que nos acompanhou em Shadowlands. Durante aquela expansão, suas motivações eram misteriosas e pouco claras. Agora, descobrimos que ela estava lá pesquisando informações para ajudar na restauração de seu planeta natal, Caraxes. Todos os recursos que conseguimos para ela foram investidos nos domos que agora vemos no jogo, parte do esforço para reconstruir a natureza e a fauna do planeta devastado.

A Blizzard está efetivamente apagando todas as conexões nebulosas que Ve’nari tinha com o “mistério” de Shadowlands, focando apenas em seu objetivo de restaurar Caraxes e obter conhecimento de outros lugares. Similarmente, o Mercado Velado de Tazavesh, que encontramos em Shadowlands, agora é explicado como estando em um “plano entre planos” - um tipo de vazio transitório usado pelos Negociantes para se deslocarem, completamente desconectado da narrativa original de Shadowlands.

Os próprios Negociantes estão sendo recontextualizados como parentes dos Etéreos. Todos viviam em Caraxes e se tornaram mercadores após a destruição de seu mundo, viajando pelo cosmos para comerciar e aprender, com o objetivo final de reconstruir seu planeta. Essa nova narrativa os desliga completamente de Shadowlands e os integra de forma mais orgânica à cosmologia estabelecida de WoW.

Crônicas e a natureza subjetiva do lore

Um ponto crucial para entender esses retcons é a natureza das próprias Crônicas de Warcraft. Muitos jogadores consideram esses livros como a “verdade absoluta” do universo de WoW, mas os próprios desenvolvedores deixaram claro que esses textos são escritos da perspectiva de mortais de Azeroth, com conhecimento limitado.

Isso significa que as Crônicas representam o entendimento atual dos personagens sobre o cosmos, não necessariamente a verdade objetiva. É como se Brann Barbabrônzea estivesse escrevendo esses livros baseado apenas no que ele sabe no momento. Se ele descobrir apenas parte de uma informação, é isso que será registrado, e se posteriormente novas descobertas forem feitas, a “história oficial” pode mudar.

Essa abordagem dá aos escritores uma saída conveniente para retcons futuros. Eles podem sempre dizer: “Bem, isso era apenas o que os mortais entendiam na época, mas a verdade completa era outra.”

Vemos essa subjetividade refletida até mesmo dentro do próprio jogo. Em Shadowlands, o personagem Fi’rin investigava as origens da cosmologia conhecida e desenvolveu teorias sobre “Os Primeiros”, supostamente os criadores dos Titãs e de locais como Zereth Mortis. Mas até mesmo Fi’rin estava limitado por sua própria existência e conhecimento, o que se reflete no mapa cosmológico de Shadowlands, que coloca as Terras Sombrias em destaque central - uma perspectiva claramente tendenciosa baseada em quem criou o mapa.

Agora, os desenvolvedores estão insinuando que até mesmo a existência dos “Primeiros” pode ser apenas uma lenda, não algo confirmado. Isso abre a possibilidade de que no futuro eles também possam ser removidos do cânone ou reinterpretados, dependendo da direção que Chris Metzen e sua equipe queiram seguir.

O que permanece intacto

Nem tudo está sendo apagado ou diminuído. A participação de Denathrius, por exemplo, permanece intacta na narrativa. Sabemos que a existência atual de Sargeras se deve em grande parte às manipulações de Denathrius, que queria abalar os alicerces do Panteão da Ordem. Ele conseguiu isso corrompendo Sargeras, explorando seus maiores medos (o poder do Vazio) e fazendo-o ignorar o plano da morte.

Esse plano de Denathrius desencadeou muitos eventos importantes na história de Warcraft, incluindo a criação do Elmo da Dominação, as Val’kyr e a própria queda de Arthas. Toda essa parte da história permanece válida - apenas não foi orquestrada pelo Carcereiro como “mente mestra” por trás de tudo, como Shadowlands inicialmente sugeriu.

O futuro da narrativa de WoW

A expansão atual marca a conclusão da saga da “Alma do Mundo”, e o que vier depois será crucial para entender a direção que Chris Metzen quer dar à narrativa de Warcraft. Parece que estamos nos afastando gradualmente do foco nos Titãs para explorar novos conceitos e áreas do universo.

É possível que a Blizzard esteja se preparando para uma grande reformulação do lore, separando-se de elementos que limitam suas possibilidades narrativas futuras. Esses retcons cirúrgicos, sutis e gradativos, são parte desse processo - uma tentativa de consertar os erros do passado sem invalidar completamente a experiência dos jogadores.

Como alguém que valoriza acima de tudo as conexões reais entre jogadores em MMORPGs, vejo essas mudanças narrativas como necessárias, mas insuficientes. A Blizzard precisa se concentrar não apenas em consertar o lore, mas em criar contextos que fomentem interações genuínas entre os jogadores - algo que Shadowlands, com seu foco em sistemas isolados e narrativas grandiosas desconectadas da experiência coletiva, falhou miseravelmente em fazer.

World of Warcraft pode reduzir o Carcereiro a uma nota de rodapé na história, mas precisa resgatar o que realmente importa: criar um mundo vivo onde os jogadores sintam que suas ações e interações têm significado real - algo que os velhos MMOs como Tibia e Runescape conseguiam mesmo com gráficos simples e sistemas básicos.

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