Um novo MMORPG está surgindo no horizonte, e desta vez, os desenvolvedores prometem algo que não ouvimos há muito tempo: um retorno às raízes dos MMORPGs clássicos. Kando Realm, desenvolvido pela minúscula equipe de seis pessoas da KO Studio Games, se apresenta como uma fusão entre a mecânica viciante do RuneScape e o visual charmoso do MapleStory. Mas será que mais uma tentativa de capitalizar em cima da nostalgia realmente consegue capturar a essência do que tornava aqueles jogos verdadeiramente especiais?

A pergunta que não quer calar é: será que os desenvolvedores realmente entendem que não eram os gráficos pixelados ou as mecânicas de grind que faziam os MMORPGs clássicos serem mágicos, mas sim as conexões genuínas entre jogadores que emergiam naturalmente dessas experiências compartilhadas? Vamos dissecar este projeto e descobrir se estamos diante de uma obra que realmente compreende a alma dos MMORPGs ou apenas mais uma nostalgia de superfície.

O Paradoxo da Nostalgia nos MMORPGs Modernos

Antes de mergulharmos nas especificidades do Kando Realm, precisamos abordar o elefante na sala: a indústria de MMORPGs está obcecada em ressuscitar o “sentimento” dos jogos clássicos, mas constantemente erra o alvo. Desenvolvedores focam em mecânicas de grind, sistemas de profissões e visual retrô, pensando que isso é suficiente para recriar a magia de títulos como RuneScape, Tibia ou até mesmo jogos mais nicho como Lamentosa.

A verdade inconveniente é que a magia nunca esteve nas mecânicas em si. Ela estava na necessidade real de colaboração, na interdependência entre jogadores, nas conversas que surgiam naturalmente durante horas de grind compartilhado, nos momentos de tensão real quando você estava explorando uma área perigosa e precisava confiar em desconhecidos para sobreviver.

Kando Realm promete trazer de volta essas sensações, mas olhando mais de perto, vemos sinais preocupantes de que os desenvolvedores podem estar cometendo os mesmos erros conceituais que vemos em tantos outros projetos “nostálgicos”. O jogo apresenta um sistema onde “só o mago pode dar buff de regeneração de mana, só o ladrão pode dar buff de velocidade” – o que soa promissor na superfície, mas levanta a questão: isso realmente força interação significativa entre jogadores ou apenas cria dependência artificial?

A Ilusão das Classes Especializadas

Uma das características mais elogiadas do Kando Realm é seu retorno às classes especializadas, onde cada uma tem um papel único e indispensável. Em teoria, isso deveria forçar os jogadores a se unirem, criar grupos, formar amizades. Na prática, o que frequentemente acontece é a criação de alt characters ou a simples busca por “serviços de buff” de outros jogadores – interações superficiais e transacionais que não geram conexões reais.

Compare isso com a experiência em Lamentosa, onde a especialização não vem de buffs artificiais, mas da necessidade real de estratégia coordenada entre membros do clã. Quando você está planejando um ataque contra outro clã ou defendendo território, cada membro tem um papel genuíno baseado em suas habilidades, personalidade e histórico de confiança. Não é um sistema imposto pelo jogo, mas uma dinâmica que emerge naturalmente da necessidade de sobrevivência e crescimento coletivo.

O Kando Realm parece estar seguindo o caminho mais fácil: criar dependência mecânica e assumir que isso resultará em comunidade. É como construir uma casa começando pelo telhado – você pode até conseguir um resultado visualmente similar, mas a estrutura não será sólida.

O Problema das Animações ou Sintoma de Algo Maior?

Muito se fala sobre as animações incompletas do Kando Realm, com jogadores repetindo o mesmo movimento de “levantar a mão” para todas as ações. Os defensores do jogo rapidamente apontam que isso será corrigido, que é apenas uma questão de polimento. Mas será que é realmente apenas isso?

Kando Realm em desenvolvimento mostra potencial mas levanta questões sobre prioridades

As animações são importantes, sim, mas não pelos motivos que muitos pensam. Elas não são importantes porque fazem o jogo “parecer melhor” – afinal, alguns dos MMORPGs mais marcantes da história tinham gráficos primitivos. Elas são importantes porque comunicam informações cruciais aos jogadores, criam ritmo nas interações e, mais fundamentalmente, demonstram as prioridades dos desenvolvedores.

Quando uma equipe de desenvolvimento prioriza implementar sistemas de monetização, múltiplas plataformas e centenas de receitas de crafting antes de criar animações básicas para as ações principais do jogo, isso revela algo sobre sua compreensão do que realmente importa em um MMORPG. Eles estão construindo um produto ou uma experiência?

Em jogos como o Tibia clássico, cada sprite, cada animação simples carregava significado. Você sabia imediatamente quando alguém estava conjurando uma magia poderosa, quando estava sendo atacado, quando estava prestes a morrer. Essa clareza visual não era apenas funcional – ela permitia que jogadores reagissem uns aos outros de forma natural e intuitiva.

A Armadilha do Crafting “Descobrível”

Uma das características mais propagandeadas do Kando Realm é que 80% das receitas de crafting não são dadas ao jogador – você precisa descobri-las experimentando. Os desenvolvedores vendem isso como um retorno ao “senso de descoberta old-school”, mas esta é uma interpretação perigosamente superficial do que tornava a descoberta emocionante nos MMORPGs clássicos.

A descoberta genuína não acontece em um sistema controlado onde existe uma lista finita de combinações “corretas” aguardando para serem encontradas. Ela acontece quando jogadores encontram estratégias não intencionais, exploram mecânicas de formas inesperadas, criam soluções criativas para problemas complexos.

No Lamentosa, por exemplo, a verdadeira descoberta acontece quando clãs desenvolvem táticas inovadoras, quando alguém percebe uma sinergia não óbvia entre diferentes habilidades vampíricas, quando uma conversa casual no chat leva a uma aliança estratégica inesperada. Isso não pode ser programado ou gamificado – emerge naturalmente da interação complexa entre jogadores em um ambiente com regras flexíveis.

O sistema de crafting “descobrível” do Kando Realm é, na melhor das hipóteses, um quebra-cabeças disfarçado de descoberta. Na pior, é uma forma de estender artificialmente o tempo de jogo, forçando tentativa e erro em vez de promover experimentação genuína.

A Monetização “Ética” e Seus Problemas Ocultos

O modelo de monetização do Kando Realm tem sido amplamente elogiado por evitar microtransações e pay-to-win, optando pelo sistema clássico de membership similar ao RuneScape. Superficialmente, isso parece uma decisão sábia e ética. Mas vamos examinar as implicações mais profundas.

O modelo de membership cria uma divisão invisível na base de jogadores. Jogadores free-to-play inevitavelmente se tornam cidadãos de segunda classe, com acesso limitado ao conteúdo de endgame e às ferramentas mais poderosas. Isso pode parecer justo – afinal, quem paga deveria receber mais – mas destroi um dos pilares fundamentais dos MMORPGs clássicos: a meritocracia baseada em dedicação e habilidade.

Em um jogo como Lamentosa, sua posição na hiervampírica não depende do quanto você pode pagar mensalmente, mas da sua contribuição real para o clã, da sua habilidade estratégica, da confiança que você construiu com outros jogadores. O dinheiro real não pode comprar respeitabilidade ou influência – essas coisas precisam ser conquistadas através de ações consistentes ao longo do tempo.

O modelo de membership também cria incentivos perversos para os desenvolvedores. Eles precisam constantemente equilibrar o conteúdo free-to-play de forma que seja envolvente o suficiente para atrair jogadores, mas limitado o suficiente para forçar upgrades para membership. Esse balanceamento raramente resulta em uma experiência orgânica e natural.

A Questão do AFK Timer e o Que Ela Revela

O Kando Realm se orgulha de não ter timer de AFK, permitindo que jogadores estacionem seus personagens em locais seguros e voltem quando quiserem. Isso é vendido como uma conveniência, uma feature que “respeita o tempo do jogador”. Mas essa decisão revela uma compreensão fundamental equivocada sobre o que torna um MMORPG envolvente.

A necessidade de estar presente, atento e vulnerável era uma característica definidora dos MMORPGs clássicos. O perigo constante, mesmo durante atividades aparentemente mundanas como mineração ou pesca, criava tensão e forçava jogadores a se organizarem, protegerem uns aos outros, formarem grupos de segurança.

Quando você remove essa vulnerabilidade, você remove uma das principais forças que empurram jogadores uns em direção aos outros. Por que formar uma guilda de mineradores se você pode simplesmente deixar seu personagem AFK em segurança? Por que criar sistemas de proteção mútua se não há nada a temer?

World Bosses e a Commodificação da Raridade

O sistema de world bosses do Kando Realm promete drops raros e valiosos que justifiquem o grind. Há até mesmo sistemas de proteção contra má sorte, garantindo recompensas após um certo número de tentativas. Novamente, isso soa razoável na superfície, mas esconde problemas conceituais profundos.

Raridade verdadeira não pode ser programada ou garantida. Ela emerge naturalmente de sistemas complexos onde múltiplos fatores imprevisíveis se alinham. Quando você garante que todo mundo eventualmente conseguirá o item raro, ele deixa de ser raro – torna-se apenas outro checkpoint em uma lista de tarefas.

Compare isso com a experiência de encontrar um item verdadeiramente raro em um ambiente onde não há garantias, onde a sorte genuína e as circunstâncias únicas se alinham para criar um momento verdadeiramente especial. Esses momentos não podem ser reproduzidos ou garantidos – eles precisam ser possíveis, mas nunca inevitáveis.

O Problema da Descoberta Artificial vs. Emergência Genuína

Há uma diferença fundamental entre sistemas que simulam descoberta e ambientes onde descobertas genuínas podem emergir. Kando Realm parece estar firmemente na primeira categoria, com suas receitas escondidas, easter eggs planejados e sistemas de progressão cuidadosamente calibrados.

Descoberta real acontece quando jogadores encontram possibilidades que nem mesmo os desenvolvedores previram. Acontece quando a complexidade de sistemas interagindo produz resultados inesperados. Acontece quando jogadores criam suas próprias tradições, desenvolvem suas próprias linguagens, estabelecem suas próprias hierarquias sociais.

Em jogos verdadeiramente emergentes como EVE Online ou mesmo em ambientes mais simples como Lamentosa, os jogadores constantemente surpreendem os desenvolvedores com inovações táticas, organizações sociais complexas e estratégias que nunca foram intencionalmente programadas.

A Armadilha das “Conexões Forçadas”

O design do Kando Realm parece baseado na premissa de que você pode forçar jogadores a se conectarem através de dependências mecânicas. Precisa de um buff de mana? Encontre um mago. Precisa de velocidade extra? Procure um ladrão. Isso não é conexão genuína – é um sistema de prestação de serviços.

Conexão real em MMORPGs emerge de necessidades compartilhadas, objetivos comuns e vulnerabilidades mútuas. Acontece quando jogadores precisam confiar uns nos outros não porque o jogo os força, mas porque as circunstâncias naturalmente criam situações onde cooperação é advantageous para todos os envolvidos.

As melhores memórias dos MMORPGs clássicos não vêm de conseguir buffs de outros jogadores ou completar dungeons com grupos aleatórios. Elas vêm de momentos de tensão compartilhada, de conquistas coletivas genuínas, de relacionamentos que se desenvolveram organicamente ao longo do tempo através de experiências significativas compartilhadas.

O Futuro dos MMORPGs e a Lição Não Aprendida

Kando Realm representa um problema mais amplo na indústria de MMORPGs: a tentativa constante de recriar sucessos passados sem compreender as condições que os tornaram possíveis. Desenvolvedores olham para RuneScape e veem sistemas de skill, grind e drops raros. Eles perdem completamente de vista o contexto social, as limitações técnicas que forçavam colaboração, e a novidade de um meio ainda em evolução.

O que fazia jogos como RuneScape, Tibia ou Lamentosa especiais não eram suas mecânicas individuais, mas a forma como essas mecânicas interagiam com as necessidades sociais dos jogadores. Eram as limitações, não as conveniências, que criavam oportunidades para conexão genuína.

Conclusão: Potencial Desperdiçado ou Base para Evolução?

Kando Realm claramente tem potencial. A dedicação da pequena equipe é admirável, e sua tentativa de retornar às raízes dos MMORPGs demonstra que alguém ainda se importa com o que tornou este gênero especial. No entanto, o jogo parece estar seguindo o caminho mais seguro e familiar, em vez de realmente inovar ou questionar as convenções modernas.

A verdadeira questão não é se Kando Realm será um jogo “bom” ou “ruim” – provavelmente será competente e até mesmo divertido para muitos jogadores. A questão mais profunda é se ele contribuirá para a evolução do gênero MMORPG ou simplesmente adicionar mais uma entrada à crescente lista de jogos “nostálgicos” que capturam a superfície dos clássicos enquanto perdem sua essência.

Para desenvolvedores futuros, Kando Realm serve como um estudo de caso interessante: é possível criar um MMORPG tecnicamente sólido e comercialmente viável sem necessariamente compreender o que tornou os clássicos do gênero verdadeiramente transformadores. A questão que permanece é: isso é suficiente, ou deveríamos esperar mais da próxima geração de MMORPGs?

Talvez o real valor do Kando Realm não esteja em ser a resposta definitiva para os problemas dos MMORPGs modernos, mas em demonstrar tanto as possibilidades quanto as limitações de uma abordagem puramente nostálgica. Se os desenvolvedores conseguirem aprender com as reações da comunidade e evolueir além de suas inspirações iniciais, ainda há esperança de que este projeto possa crescer em algo verdadeiramente especial.

Mas até lá, permanece uma questão: será que estamos condenados a uma era de MMORPGs que são tecnicamente superiores aos clássicos em todos os aspectos mensuráveis, mas que nunca conseguem capturar aquela magia indefinível que nos mantinha conectados por horas não apenas ao jogo, mas uns aos outros?

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