Quando pensamos em fangames de Undertale, nossa mente automaticamente vai para aquelas batalhas impossíveis contra Sans, repletas de ataques devastadores e frustrações infinitas. Mas e se eu te dissesse que existe um projeto que vai muito além disso? Um fangame que constrói uma mitologia tão rica e envolvente que poderia facilmente ser considerado uma obra autoral por mérito próprio?
O fangame “Underfell: Histórias do Mar” chegou para quebrar todos os nossos preconceitos sobre projetos fan-made. Criado pelo talentoso Benlano, com base no AU desenvolvido por one2005 e yongo, este não é apenas mais um combate contra Sans - é uma jornada épica através de oceanos malditos, frotas perdidas e segredos que atravessam séculos de história.
Uma Mitologia Oceânica que Redefine o Universo de Undertale
A primeira coisa que impressiona neste fangame é a profundidade de sua worldbuilding. Estamos diante de um universo onde humanos e monstruos não apenas coexistem, mas constroem civilizações inteiras juntos. Esta não é a realidade subterrânea que conhecemos do jogo original - aqui, ambas as raças navegam pelos mesmos mares, comercializam nas mesmas cidades e enfrentam os mesmos perigos.
Mas qual seria o maior perigo neste mundo marítimo? Os mortos-vivos, conhecidos como “dead”, que surgem quando humanos ou monstruos morrem mas mantêm suas almas presas por obsessões poderosas. Estes seres espectrais, envolvidos em chamas fantasmagóricas cujas cores refletem seus estados mentais, tornaram-se inimigos de ambas as raças vivas.
A era da grande navegação trouxe consigo não apenas descobertas e riquezas, mas também um dos episódios mais trágicos desta realidade alternativa. Foi durante esse período dourado de exploração que a Frota Dreemur fez uma descoberta que mudaria o destino de todos a bordo para sempre.
A Tragédia da Frota Dreemur: Quando a Honra Custa a Liberdade
Imagine a cena: uma frota majestosa, financiada pelos mais poderosos políticos e comerciantes da época, navegando rumo ao desconhecido em busca de novas terras. O capitão Asgore - sim, nosso querido rei cabra em uma versão marinheira - comandava esta expedição com a esperança de expandir horizontes e trazer prosperidade para seu povo.
A descoberta de um novo continente deveria ter sido motivo de celebração. Em vez disso, tornou-se o início de um pesadelo moral que ecoaria através dos séculos. Quando a frota chegou às novas terras, descobriram algo que mancharia para sempre a honra de seus financiadores: o verdadeiro objetivo da missão era escravizar os nativos da região recém-descoberta.
O que acontece quando um líder honorável se vê diante de uma escolha impossível? Asgore não hesitou. Recusando-se a ser cúmplice de tamanha atrocidade, ele tomou a decisão mais corajosa e arriscada de sua vida: expulsar os representantes do governo e da marinha de seus navios. Por um breve momento, parecia que a justiça havia prevalecido.
Mas governos não perdoam facilmente quem desafia sua autoridade. Uma armada conjunta de várias nações foi enviada para cercar a frota rebelde. Mesmo com sua valente resistência, mesmo com a coragem de marinheiros dispostos a morrer por seus ideais, a Frota Dreemur foi derrotada. E então veio a punição mais cruel que se pode imaginar.
A Maldição Eterna: Prisioneiros das Profundezas
Os governos vitoriosos não se contentaram apenas com a derrota militar. Eles trouxeram consigo magos especializados, conhecidos como “Goden Boys”, para aplicar uma maldição que faria qualquer punição física parecer misericordiosa. A tripulação da Frota Dreemur foi amaldiçoada com uma prisão eterna: jamais poderiam retornar à superfície.
Através de um campo magnético sobrenatural, o barco inteiro e todos a bordo foram arrastados para as profundezas do oceano, aprisionados para sempre em uma zona conhecida como o Círculo de Cine. Ali, nas trevas abissais, homens e monstruos que um dia navegaram sob o sol foram condenados a uma existência submarina sem fim.
Séculos se passaram. A Frota Dreemur tornou-se lenda, depois mito, depois apenas uma história que alguns marinheiros veteranos contavam para assustar novatos. Mas lendas têm o poder peculiar de atrair exatamente o tipo de pessoa capaz de torná-las realidade novamente.
O Chamado da Aventura: Frisk e o Mistério do Círculo de Cine
No ano 20x, um aventureiro chamado Frisk ouviu falar da lenda do Círculo de Cine. Diferente de outras pessoas que simplesmente descartariam tal história como superstição, Frisk sentiu o chamado irresistível da aventura verdadeira. Que tipo de segredos estariam escondidos nas profundezas? Que destino aguardou a tripulação amaldiçoada todos esses anos?
Determinado a descobrir a verdade, Frisk preparou sua expedição e navegou em direção à zona lendária. Mas o campo magnético que uma vez aprisionou a Frota Dreemur ainda estava ativo, e o yate do aventureiro foi inexoravelmente puxado para as profundezas submarinas. Sem saber ao que estava prestes a se enfrentar, Frisk iniciou uma jornada que o levaria face a face com os fantasmas vivos de uma tragédia secular.
A Filosofia das Almas: Uma Cosmogonia Complexa
Um dos aspectos mais fascinantes deste fangame é como ele expande e reinterpreta o conceito de almas do Undertale original. Aqui, descobrimos que nem humanos nem monstruos existiam originalmente neste universo. Ambas as raças foram criadas por seres extraterrestres de inteligência superior - entidades que os humanos chamam simplesmente de “deuses”.
Mas por que estes seres criaram vida senciente? A resposta é tanto fascinante quanto perturbadora. Os deuses precisam da energia liberada quando as almas dos mortos-vivos se desintegram. Esta energia é essencial para seu objetivo final: replicar o mundo antigo em uma nova realidade após um evento de aniquilação final.
Esta revelação transforma completamente nossa compreensão do universo do jogo. Humanos e monstruos não são apenas criaturas vivendo suas vidas - eles são, inconscientemente, parte de um ciclo cósmico muito maior, destinados a alimentar uma renovação universal através de sua própria mortalidade.
Magia e Alquimia: Dois Caminhos, Uma Origem
O sistema de poder neste universo é elegantemente simples e ao mesmo tempo profundo. A alma é a manifestação da própria força vital e consciência. Quando uma alma é ferida, o corpo sofre, e vice-versa. A força de uma alma determina diretamente o nível de magia e alquimia que um indivíduo pode dominar.
A magia funciona convertendo a energia da alma em outras formas de energia. Todos os ataques mágicos causam dano diretamente à alma do alvo, ignorando completamente defesas físicas. É uma forma de combate pura, espiritual, onde a força interior determina tanto o poder de ataque quanto a capacidade de resistência.
A alquimia, por outro lado, utiliza a energia da alma apenas como catalizador para transformar a matéria física. Os ataques alquímicos são considerados ataques físicos convencionais, causando dano corporal real. É a diferença entre ferir o espírito de alguém versus ferir seu corpo.
Existe, contudo, um aspecto da alquimia que é considerado tabu absoluto: a alquimia viviente. Esta arte proibida inclui a criação de seres humanos artificiais e, mais controverso ainda, a ressurreição dos mortos. As implicações morais e práticas de tais artes são tão graves que sociedades inteiras as baniram.
O Preço Terrível da Absorção de Almas
Um dos conceitos mais sinistros apresentados no fangame é a possibilidade de absorção de almas. Tecnicamente, é possível absorver a alma de outro ser para aumentar drasticamente a própria força. Mas como toda fonte de poder rápido, esta habilidade vem com um preço terrível.
Ao absorver uma alma, o absorvedor não ganha apenas poder - ele herda todos os recuerdos, todas as experiências, todos os traumas e sofrimentos daquela alma. Imagine carregar não apenas suas próprias dores, mas as dores de vida inteira de outra pessoa. O resultado inevitável é a loucura completa.
Esta mecânica cria uma tensão fascinante entre poder e sanidade mental. Quanto mais forte alguém se torna através da absorção, mais próximo da insanidade total essa pessoa fica. É um sistema que pune naturalmente a ganância por poder, criando um equilíbrio onde força bruta nunca pode ser perseguida sem consequências devastadoras.
As Três Raças e Suas Peculiaridades
O fangame apresenta uma taxonomia interessante das criaturas sencientes. Os humanos, apesar de terem domínio mágico ligeiramente inferior ao dos monstruos, compensam com maior sabedoria. Esta diferença sutil sugere uma especialização evolutiva ou de design: onde os monstruos foram otimizados para poder mágico bruto, os humanos foram favorecidos com capacidade intelectual superior.
Entre os monstruos, existem três categorias principais. Primeiro, aqueles com formas completamente distintas e únicas - criaturas que não seguem padrões biológicos reconhecíveis. Segundo, seres que representam uma mistura de várias formas biológicas, como se fossem experimentos de combinação genética. Terceiro, aqueles que aparecem como uma fusão entre características humanas e animais.
Esta diversidade sugere que os criadores extraterrestres experimentaram extensivamente com diferentes formas de vida senciente antes de encontrar as combinações ideais para seus propósitos.
Sans: O Trompetista Artista das Profundezas
E então chegamos ao personagem central do fangame atual: Sans, reimaginado como um morto-vivo conhecido como “o trompetista”. Este não é o Sans preguiçoso e piadas infames que conhecemos. Este é um artista louco, envolvido em chamas fantasmagóricas magenta - a cor mais incomum entre os mortos-vivos.
A personalidade desta versão de Sans é uma mistura fascinante de genialidade artística e insanidade completa. Ele se vê como um verdadeiro artista, realizando atos que parecem completamente sem sentido para observadores externos - como verter tinta nas órbitas oculares de seus próprios restos mortais. No entanto, suas criações coincidem inesperadamente com arte abstrata contemporânea, possuindo uma estética genuinamente pós-moderna.
O combate contra este Sans não é apenas uma batalha - é uma performance artística. Cada ataque se move em sincronização perfeita com a música, criando uma experiência que é simultaneamente letal e bela. Quando ele diz que sua obra-prima seria “melhor com um assassino espalhado por ali, membro por membro”, não é apenas uma ameaça - é uma declaração artística.
A Mecânica da Respiração: Inovação em Combate
Uma das adições mais inteligentes do fangame é a mecânica de respiração submarina. Lutando nas profundezas oceânicas, o jogador deve gerenciar não apenas a vida e os ataques inimigos, mas também a necessidade básica de respirar. Esta limitação adiciona uma camada extra de tensão ao combate, forçando estratégias mais agressivas para terminar as lutas antes que o oxigênio se esgote.
Esta mecânica transforma combates que de outra forma seriam batalhas de resistência em corridas contra o tempo. Não basta ser defensivo e esperar oportunidades - a pressão constante da asfixia iminente força jogadores a assumirem riscos calculados e manterem pressão ofensiva constante.
A Transformação Épica: Quando a Inspiração Ataca
O momento mais cinematográfico do combate ocorre quando Sans, aparentemente derrotado e exausto, recebe uma súbita explosão de inspiração artística. Em uma cena que poderia ter saído diretamente de um filme épico, ele adota uma nova forma, transformando-se completamente diante dos olhos do jogador.
Esta não é apenas uma segunda fase de combate - é uma revelação character. O Sans que parecia estar perdendo a batalha revela ser apenas a versão contida de si mesmo. Quando a verdadeira inspiração o atinge, toda a sua natureza artística e poder se manifestam simultaneamente.
O cenário ao redor literal e figurativamente pega fogo. As chamas magenta que envolvem Sans se intensificam, criando uma exibição visual que é digna de um artista que sacrificou tudo pela sua arte. É um momento sublime onde destruição e criação se fundem em uma única experiência estética.
O Sacrifício Final: Arte Através da Dor
Mesmo após receber um ferimento aparentemente mortal, Sans encontra forças para continuar lutando. Mas há um twist cruel em sua determinação: o ataque que o feriu custou-lhe a visão. Ele admite que pode nem mesmo estar vendo o jogador claramente anymore, mas isso não importa. A arte verdadeira transcende limitações físicas.
É neste momento que a profundidade filosófica do personagem se revela completamente. Sans não está lutando por vitória ou sobrevivência - está lutando para completar sua obra-prima. A batalha em si é sua criação artística final, e ele está disposto a sacrificar tudo, incluindo sua capacidade de ver o resultado, para completá-la.
Sua declaração final é tanto melancólica quanto esperançosa: “Apesar do meu sacrifício, sei que voltarei ao meu trabalho em outro momento.” Para um morto-vivo, a morte não é final - é apenas uma pausa temporária antes do próximo projeto artístico.
O Potencial Futuro: Mais Que Uma Batalha
Atualmente, este fangame consiste apenas na batalha contra Sans, mas os criadores indicaram que pode ser expandido com mais chefes no futuro. Dado a riqueza do mundo criado e a profundidade da narrativa apresentada, as possibilidades são praticamente infinitas.
Podemos imaginar encontros com outros membros da tripulação amaldiçoada da Frota Dreemur. Talvez Asgore ainda comande seus homens nas profundezas, mantendo a mesma honra que uma vez o condenou ao exílio submarino. Outros personagens familiares poderiam aparecer transformados por séculos de existência subaquática.
A própria exploração do Círculo de Cine oferece potencial narrativo imenso. Que outros segredos estão escondidos nas profundezas? Que outros navios podem ter sido capturados pelo campo magnético ao longo dos séculos? Cada destroço poderia contar uma história, cada encontro poderia revelar mais sobre a complexa mitologia deste universo.
Uma Obra de Arte Disfarçada de Fangame
“Underfell: Histórias do Mar” prova que a comunidade fan pode criar experiências que rivalizam ou mesmo superam obras profissionais. O trabalho de Benlano, baseado no AU de one2005 e yongo, não é apenas um tributo ao Undertale original - é uma expansão legítima que adiciona camadas genuínas de complexidade e profundidade ao universo que todos amamos.
O fangame consegue algo extraordinário: manter a essência emocional do Undertale enquanto cria algo completamente novo. As questões morais sobre escolhas impossíveis, o peso das consequências, a natureza da determinação - todos estes temas centrais estão presentes, mas filtrados através de uma lente completamente diferente.
Este projeto representa o melhor da criatividade fan: não apenas imitar, mas inovar. Não apenas copiar, mas expandir. Não apenas homenagear, mas transcender. Em um mar de fangames que se contentam em reciclar elementos familiares, “Histórias do Mar” navega em águas completamente novas, descobrindo territórios narrativos que enriquecem toda a experiência Undertale.
Para qualquer fã da obra de Toby Fox, este fangame é uma descoberta obrigatória. E para qualquer pessoa interessada em storytelling interativo e worldbuilding criativo, é um exemplo brilhante de como paixão e talento podem criar algo verdadeiramente especial.