Imagine a seguinte situação: você acabou de zerar Undertale pela décima vez, decorando cada diálogo, cada easter egg, cada segredo que Toby Fox escondeu naquela obra-prima. Mas quando você abre o jogo novamente, algo está… diferente. Não é mais o Undertale que você conhece. É exatamente essa a premissa assombrosamente familiar que dá vida ao ARG “Unlettered User”, uma experiência que está redefinindo como olhamos para histórias de terror baseadas em videogames.
Ao contrário dos típicos “creepypastas” que se limitam ao clichê da “entidade maligna no meu PC”, Unlettered User constrói uma narrativa psicológica profunda que usa Undertale como pano de fundo para explorar temas muito mais sombrios e humanos.
A Corrupção Gradual da Inocência
A série começa de forma aparentemente simples: acompanhamos alguém rejogando Undertale, mais especificamente na jornada até Snowdin. Mas logo nas primeiras cenas, as anomalias começam a se manifestar. Uma ligação interrompe a gameplay, NPCs desaparecem misteriosamente, e placas com mensagens codificadas surgem onde não deveriam existir.
O que torna Unlettered User especial é justamente essa progressão orgânica do estranho. Não há jumpscares baratos ou sustos gratuitos - apenas a crescente sensação de que algo fundamentalmente errado está acontecendo. Snowdin, uma cidade que no jogo original transborda aconchego e vida, se transforma em um cemitério silencioso, quase uma versão de Silent Hill do mundo de Undertale.
O Quebra-Cabeças Cifrado
Uma das características mais impressionantes do ARG é seu uso inteligente de criptografia. As mensagens espalhadas pela série utilizam a cifra de Vigenère, transformando cada descoberta em um verdadeiro trabalho de detetive digital. Frases aparentemente sem sentido se revelam ameaças diretas: “This is not the end” (Esse não é o fim) e “I need another” (Eu preciso de outro) são apenas o começo de um puzzle muito mais sinistro.
A entidade por trás dessas alterações não é apenas mais um glitch assombrado. Ela conhece detalhes íntimos sobre o jogador - seu nome completo (Michael), seu apelido online (Megap 1996), e aparentemente sua história pesada. Quando essa “coisa” quebra a quarta parede chamando Michael pelo nome, o impacto é genuinamente perturbador.
Além do Terror Digital
O que eleva Unlettered User acima de outros ARGs similares é sua recusa em se apoiar em tropos batidos. Quando Michael tenta fechar o jogo com Alt+F4, inicialmente funciona - uma decisão narrativa brilhante que mostra que o protagonista usa lógica, não apenas aceita passivamente os eventos sobrenaturais. Mas conforme a série progride, até mesmo essa válvula de escape é removida.
A revelação gradual de que a entidade pode estar conectada a Dan, um amigo que Michael aparentemente matou, transforma toda a experiência. Não estamos mais lidando com uma força externa malévola, mas com a materialização digital da culpa e do remorso. Os sonhos com flores mencionados por Michael ganham um significado muito mais sombrio quando entendemos que representam sua vítima.
Uma Nova Abordagem para Histórias Interativas
Unlettered User prova que o gênero de ARGs baseados em jogos ainda tem muito a oferecer quando nas mãos certas. Ao usar Undertale - um jogo conhecido por sua mensagem de compaixão e escolhas morais - como véículo para explorar as consequências de ações terríveis, a série cria uma dissonância narrativa poderosa.
A série ainda está em seus estágios iniciais, mas já demonstra uma maturidade narrativa impressionante. Em vez de depender de sustos fáceis, constrói tensão através de detalhes sutis e revelações psicológicas graduais. É uma masterclass em como contar uma história de terror que respira, evolui e, principalmente, ressoa emocionalmente com sua audiência.
Para os fãs de ARGs que já se cansaram das fórmulas repetitivas do gênero, Unlettered User oferece uma experiência genuinamente diferente - uma que usa a nostalgia e o carinho que temos por Undertale para explorar os cantos mais sombrios da psique humana.